O que o fracasso do Plano Cruzado e os erros em Gestão de Produto têm em comum?
Em 1986, o Brasil apostou tudo em um plano ambicioso para conter a inflação: uma nova moeda (o cruzado), congelamento de preços e uma promessa ousada de estabilização econômica.
A euforia foi imediata. Por um breve perÃodo, parecia que o paÃs finalmente havia vencido a hiperinflação, mas o otimismo durou pouco. Em poucos meses, a inflação voltou com força — e o plano colapsou.
Mas por que o Plano Cruzado fracassou?
De forma simplificada, o governo brasileiro não fez um diagnóstico claro e preciso da dinâmica inflacionária. Francisco Lopes, um dos idealizadores do plano, reconheceu depois que o governo subestimou a complexidade da inflação inercial e superestimou o poder de um congelamento de preços sem mecanismos de transição (LOPES, 1989).
Havia também disputas polÃticas internas entre os ministérios que dificultaram a construção de um plano mais sustentável. Luiz Carlos Bresser-Pereira, participante ativo do governo da época, foi um dos primeiros a destacar que o plano carecia de sustentação fiscal e de mecanismos de ajuste mais flexÃveis.
O resultado?
Um alÃvio passageiro, seguido de um retorno ainda mais desorganizado da inflação, culminando no fracasso do plano em menos de um ano.
E o que isso tem a ver com Gestão de Produtos?
Mais do que parece.
Quantas vezes, em Gestão de Produto, nos sentimos pressionados a entregar logo alguma solução? Quantas vezes pulamos a fase de diagnóstico? Quantas vezes vamos direto para o desenvolvimento, sem entender a fundo a dor do usuário, o cenário de uso, ou até se o problema existe mesmo?
Movidos pela urgência, entregamos rápido — e mal.
E aà o que lançamos não resolve a dor real, não gera valor, e pode até gerar mais confusão do que solução.
Tomemos como exemplo a nova Tela de Consulta de TÃtulos que criamos para o Sienge. Acreditávamos que o que os usuários mais valorizavam era uma tela completa, repleta de filtros e com o máximo de informações disponÃveis. Ainda que tenhamos validado algumas dessas hipóteses — e parte delas até tenham sido confirmadas, no lançamento percebemos que a realidade era diferente: o engajamento foi abaixo do esperado e, durante o piloto, 60% dos clientes ainda preferiam utilizar a tela antiga.
Diante desse cenário, partimos para a escuta ativa: coletamos feedbacks, analisamos os principais pontos de atrito e mergulhamos mais fundo no comportamento dos usuários. Descobrimos, então, que a principal dor não estava na falta de informação, mas sim no excesso dela. Para uma parte dos clientes, a nova tela parecia carregada demais e dificultava a navegação. Por outro lado, havia também um grupo que valorizava justamente o acesso amplo e detalhado aos dados.
Ou seja: o que parecia um problema de funcionalidade era, na verdade, uma questão de flexibilidade.
A solução só surgiu a partir desse entendimento mais profundo: criamos duas versões complementares — uma tela sintética, mais leve e objetiva, e outra com análise mais detalhada dos resultados. Assim, conseguimos atender perfis diferentes de usuários, respeitando seus modos de operar. A versão sintética passará por piloto nos próximos meses.
Vejamos abaixo a diferença entre as soluções que foram propostas:
Versão Sintética

Versão AnalÃtica

O que diz a teoria?
Essa realidade já foi amplamente discutida em boas práticas de Produto, como as defendidas por Marty Cagan em Inspired (2017), que reforça: os melhores produtos nascem de um entendimento profundo dos problemas dos usuários — e não da pressa por entregar algo.
Melissa Perri também destaca em Escaping the Build Trap (2018) que times que não sabem diagnosticar e priorizar problemas reais acabam caindo na armadilha de “entregar por entregar”, sem impacto.
Diagnóstico importa — e muito.
Entender o contexto, investigar as causas, escutar de verdade as dores: isso faz toda a diferença. No Plano Cruzado, a ausência de um diagnóstico sólido comprometeu toda a estratégia. Em Gestão de Produto, acontece o mesmo quando deixamos de lado a descoberta e saltamos direto para a entrega.
Referências
Bresser-Pereira, Luiz Carlos. A crise do Estado. Nobel, 1992.
Cagan, Marty. Inspired: How to Create Tech Products Customers Love. Wiley, 2017.
Lopes, Francisco. O choque heterodoxo do Plano Cruzado e a teoria da inflação inercial. Revista de Economia PolÃtica, 1989.
Perri, Melissa. Escaping the Build Trap: How Effective Product Management Creates Real Value. O’Reilly Media, 2018.
Post necessário. Termos acordos de trabalho que sejam atendidos mesmo em momentos de crise garante que as entregas com qualidade sempre aconteçam. Te agradeço por compartilhar e nos desafiar para um “call to action”
Excelente reflexão, Carol! Ficou bem clara essa conexão entre economia e gestão de produtos. Um ótimo lembrete da importância do diagnóstico antes da execução.